Envelopes e Ventoínhas!!!

quarta-feira, abril 04, 2007

Atenção ao canto superior direito...

António morreu.
Estava vivo, mas já não está.
Esteve nessa condição durante 33 anos. Consecutivos. Julgo que foi feliz. Ele também julgava.
Teve uma infância urbana, mas há 2 décadas. Brincava na rua. Corria na terra. Sonhava ter uma casa numa árvore. Cresceu.
Tornou-se um jovem inteligente, culto, sociável. “É simpático, mas não é muito giro. O André sim, é um pão…” sentenciava o mulherio. O pão, o André, era um dos seus amigos. António era popular. Nunca estava sozinho. Não deu muitos beijos. O André, não sendo tão popular, apresentava um currículo invejável. António amava o protagonismo. Sei-o e ele também o sabia. Cresceu.
Um homem normal. Continuava popular. Sempre rodeado de amigos. Activo. Inteligente. Feliz. Amava o protagonismo. Gostava que falassem dele. Adorava que pensassem nele. Sorria ao ver-se, ao ouvir-se.
Mantinha-se insatisfeito, mas parecia feliz.
Engendrou pequenos acidentes que o hospitalizassem para o visitarem.
Aplicou microfones quase invisíveis para ouvir os comentários das suas pessoas.
Viveu 33 anos a pensar numa forma de ver e ouvir os outros na sua ausência.
Gostava que sentissem pena dele. Gostava que sentissem orgulho nele. Gostava que sentissem inveja dele. Gostava que admirassem as coisas dele. Gostava que falassem dele. Tudo dele. Ninguém o percebia, mas o mundo era ele.
Acreditava que da morte resultaria a elevação da sua alma (o seu corpo, mas transparente) e observaria, sem ser visto, no canto superior direito do ecrã todas as pessoas que falassem de si. Perceberia o que sentiam, como choravam, como o resumiam.
Como sou o narrador desta história, uma espécie de entidade divina, disse-lhe, adivinhando o que ia acontecer, que as coisas não eram bem assim. Não percebeu quem eu era, naturalmente, e ignorou os sinais que lhe dei.
Lavou a louça do pequeno-almoço. Sensibilizaria a mãe. O pai já o observava, segundo ele, há anos pelo canto superior direito do ecrã. Escreveu um bilhete oferecendo um beijo à sua mãe. Seguiu viagem. Ligou, como normalmente fazia, à sua namorada. “Logo passo aí às 6.30h. Não te atrases. Beijo grande. Amo-te… Pra sempre.” Despediu-se. Ambas as despedidas foram propositadamente especiais. Tornar-se-iam dramáticas.
O Audi A3 atingiu, como nunca, os 193Km/h. Guinar o volante a essa velocidade seria fatal.
Foi.
Não houve luz. Não houve túnel. Não houve voz. Nada se tornou transparente. Não está ninguém no canto superior direito do ecrã.
O António morreu. Coitado...