Envelopes e Ventoínhas!!!

quarta-feira, março 07, 2007

Ao longe

Observo-os ao longe.
Quis saber o que era amor e pesquisou.
A palavra amor (do latim amor) presta-se a múltiplos significados na língua portuguesa. Pode significar afeição, compaixão, misericórdia
, ou ainda, inclinação, atracção, apetite, paixão, querer bem, satisfação, conquista, desejo, libido, etc.
Para Sócrates amor “era a única coisa que ele podia entender, e falar com conhecimento de causa.
Segundo Platão amor “era uma caçada e distinguia três tipos de amor: o amor terreno, do corpo; o amor da alma, celestial; e outro que é a mistura dos dois.” Em todo caso o amor, em Platão, “é o desejo por algo que não se possui”.
Camilo Castelo Branco considerou que amor é “uma luz que não deixa escurecer a vida”.
O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente”, considerou Luís Vaz de Camões.

Mas o João só queria estar com ela. Achava-a gira, interessante, gostava de falar com ela. Paula era inteligente, culta, cativante, meiga, calma, estável, misteriosa, tudo isto segundo o ponto de vista de João.
Estava apaixonado, digo eu!

Observo-os ao longe.
Não eram sequer amigos, conheciam-se.
Eram ambos personagens de um grupo que se juntava diariamente para ajudar seres humanos. Organizavam-se em equipas e partiam pela cidade distribuindo alimentos, sorrisos e força a alguns seres vivos bípedes que pernoitavam em piores condições que os aspiradores armazenados no Jumbo. Os cartões que envolviam estas vidas não eram novos, enquanto que qualquer electrodoméstico não admitia reutilizar uma embalagem. O mínimo que um aspirador pode exigir é uma caixa nova, bonita e confortável. Os aspiradores também são dignos.
Paula e João faziam normalmente parte da mesma equipa. Divertiam-se, sorriam, gostavam da companhia do outro. Conversavam nos tempos livres, trocavam opiniões, olhares, e-mail’s – sem conteúdo, vídeos, piadas e truques para a realização de desejos. Aparentemente, noutras circunstâncias, a história poderia ser diferente.
João avaliava todos os movimentos, todos os olhares, os raros toques, a forma de estar de Paula. Queria-a conhecer cada vez mais, cada vez melhor. Queria ser aquilo que ela queria que ele fosse. Esforçava-se.
Paula era bonita, João nem por isso. Paula era experiente, João nem por isso.
João era divertido, Paula nem por isso. João era forte, Paula nem por isso.
Paula era opulenta, João nem por isso.
João era irreverente, Paula nem por isso.
Paula era sensível, João nem por isso.
João era alto, Paula nem por isso.
Identificavam-se e achavam-se piada.

Observo-os ao longe.
João percebe que ambos representam papéis naquele cenário altruísta. Não se conheciam noutro palco. Imaginavam-se.
Ele queria tocar-lhe. Era capaz de jurar que toda a sua pele era duma macieza arrepiante. Um dia os seus rostos estiveram perto, nada premeditado, aconteceu. João foi racional, nunca espontâneo. Olhava-a e só queria senti-la. Pessimista, sempre acreditou que para ela nunca tal lhe passara pela cabeça. Nunca quebrou a barreira.
Continuaram bons companheiros, cada um com o seu papel, duas ou três horas por dia. Para João não havia limite de tempo. O jogo não terminava. Representava outros papéis, noutros grupos, mas pensava em Paula, muitas vezes.
Parecia feliz, mas não se sentia. Conversou com um amigo, bonito, experiente, opulento e sensível. A conclusão foi: “É amor, João, é amor!”
Não lidando bem com este sentimento, João quis saber o que era amor. Leu imensas definições. Não aceitou nenhuma. Pareciam-lhe ridículas. Nenhuma delas falava de Paula.
A vida continuou. A rotina.

João nunca confessou a Paula a vontade que tinha de sentir a brancura da sua pele. Nunca a sentiu. Estava certo de que ela não queria sentir o frio das suas mãos. Sentiu-as um dia.
Estava na moda e assim aconteceu. O João, um rapaz novo, morreu de repente.

Observo-os ao longe.
Paula beijou-o, frio, e sentiu as suas mãos, frias. “Se eu tivesse tido a coragem de lhe dizer o quanto gostava dele.”

Não tenho alternativa, observo-os ao longe…